terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

"O jogo da amarelinha", capítulo 8

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Eis que andava eu a pensar em peixes. Tudo por causa de um desenho de Tâmara Lyra que me lembrou a disposição que eu tenho pra amar essas criaturas. E então, ontem, numa daquelas coincidências iluminadoras, li um capítulo de O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar, extremamente belo, que me fez digitá-lo quase imediatamente, sei lá exatamente para quê, talvez porque quando eu copio algo eu acho que estou aprendendo mais com aquilo, ou me aproximando e ganhando certa familiaridade com o escrito, com o autor, com seu universo. (Acho que daí vem meu interesse pela tradução, que pratico mal e mal). Mas, neste caso, copiar o trecho não é suficiente. Já planejo uma visita ao aquário de São Paulo, me deslumbro com imagens em sites diversos, investigo espécies, hábitos e tonalidades, numa afición que certamente não conhecerá o próximo mês. E, aproveitando o trabalho já feito, posto aqui o capítulo em questão, na tradução de Fernando de Castro Ferro.      
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     "À tarde íamos ver os peixes no Quai de La Megissérie, em março, o mês leopardo, ainda frio, mas já com um sol amarelo onde o vermelho entrava um pouco mais cada dia que passava. Da grade que dava para o rio, indiferentes aos bouquinistes que nada nos dariam sem dinheiro, esperávamos o momento em que veríamos os aquários (andávamos devagar, adiando o encontro), todos os aquários ao sol e, como suspensos no ar, centenas de peixes cor-de-rosa e negros, pássaros quietos em seu ar redondo. Éramos tomados por uma alegria absurda e você Maga, cantava com vigor, arrastando-me para atravessar a rua, para entrar no mundo dos peixes pendurados no ar.
     Os aquários, grandes e pequenos, redondos e cúbicos, eram colocados na rua para atrair os curiosos. Entre os turistas e as crianças ansiosas, sem falar das senhoras que colecionavam variedades exóticas (550 fr. pièce), encontravam-se esses aquários, verdadeiros cubos ou esferas de água que o sol misturava com o ar, e os pássaros cor-de-rosa e negros, girando e dançando docemente numa pequena porção de ar, lentos pássaros frios. Ficávamos olhando, brincando de aproximar os olhos do vidro, apertando a ponta do nariz, enfurecendo as velhas vendedoras armadas de redes para caçar mariposas aquáticas, e compreendíamos cada vez menos o que é um peixe; por esse caminho de não compreender, íamos ficando cada vez mais perto deles, que não se compreendem. Ficávamos tão perto que já nos tornáramos amigos da vendedora da segunda loja, vindo do Pont-Neuf, que disse a você: "a água fria mata os meus peixinhos. A água fria é muito triste...", e eu pensava na empregada do hotel que me dava conselhos sobre um feto: "não precisa regá-lo, basta colocar um prato com água perto do jarro e, quando o feto quiser beber, bebe. Quando não quiser beber, não bebe..." E nós pensávamos nessa coisa incrível que havíamos lido, que um peixe sozinho no seu aquário se entristece e, então, basta colocar um espelho em frente do vidro e o peixe volta a ficar contente...
     Entrávamos sempre nas lojas onde as variedades mais delicadas tinham aquários especiais com termômetros e pequenos vermes vermelhos. Descubríamos, entre reclamações que enfureciam as vendedoras - tão certas de que nada compraríamos a 550 fr. pièce -, os comportamentos, os amores, as formas. Este era o tempo deliquescente, algo como um chocolate muito gostoso ou um creme de laranja da Martinica, durante o qual nos embriagávamos de metáforas e analogias, procurando sempre participar. E este peixe era precisamente Giotto, como você se recordará; e aqueles outros dois brincavam como cachorros de jade, ou um peixe era a cópia exata de uma nuvem violeta... Descubríamos como a vida se instala em formas privadas de terceira dimensão, que desaparecem se se colocarem de perfil, ou deixam apenas um traço cor-de-rosa, imóvel, vertical, na água. Um rápido movimento da barbatana e, monstruosamente, o peixinho volta a aparecer, com seus grandes olhos e, por vezes, saindo-lhe do ventre, e flutuando, uma transparente faixa de excremento que parece nunca acabar de soltar-se, um lastro que, de repente, os coloca junto de nós, roubando-lhes a sua perfeição de imagens puras, comprometendo-os para usar uma das grandes palavras que tanto empregávamos naqueles tempos".