quarta-feira, 23 de maio de 2012

Teste*

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O que é Os detetives selvagens:
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Um romance de formação?
A história de dois traficantes de drogas
Temperada com muito sexo e bebedeiras?
Uma odisséia pós-moderna?
Uma inteligente alegoria do destino humano?
Uma história sui generis das vanguardas latino-americanas?
Uma forma apenas mascarada de poema?
A reescritura, ao passo que também
O avesso de Rayuela?
O relato desesperado da vida
E do fracasso de jovens depravados e ignorantes?
Um salto no abismo
Da condição humana?
Um tapa na cara do
Presidente da Associação dos Escritores?
Um policial contemporâneo?
Uma paródia das convicções da poesia moderna?
O livro onde a poesia fica atrás da janela?
O retrato da derrota de uma geração?
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Assinale a definição
Que considere correta.
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* Exercício crítico à maneira de "Test", de Nicanor Parra**.
** O poema de Parra pode ser lido aqui, clicando-se no link para La camisa de fuerza.
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domingo, 22 de abril de 2012

"Cronos", Nicanor Parra

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Cronos
Nicanor Parra
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n
Em Feira de Santana
Os
mmdias
mmmmsão
mmmmmminterminavelmente
mmmmmmmmmmmmmmmmlongos:
Várias eternidades em um dia.
Nos movemos a lombo de mula
Como os vendedores de Varzedo:
Se boceja. Volta-se a bocejar.
No entanto as semanas são curtas
Os meses passam a toda
Eosanosparecemquevoam.
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(Poema do livro Canciones rusas, de 1967. Tradução recontextualizada de Clarisse Lyra).
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E já que estamos pensando em Feira de Santana (que no poema veio ocupar o lugar de Santiago do Chile), gostaria de compartilhar uma música que me emocionou esta manhã. Trata-se de If You Hold a Stone, de Caetano Veloso.

sábado, 21 de abril de 2012

"Mariposa", Nicanor Parra

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Borboleta
Nicanor Parra
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No jardim que parece um abismo
A borboleta chama a atenção:
Interessa seu voo recortado
Suas cores brilhantes
E os círculos pretos que decoram as pontas
mmmdas asas.
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Interessa a forma do abdômen.
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Quando gira no ar
Iluminada por um raio verde
Como quando descansa do efeito
Que lhe produzem o orvalho e o pólen
Aderida ao anverso da flor
Não a perco de vista
E se desaparece
Para além da cerca do jardim
Porque o jardim é pequeno
Ou por excesso de velocidade
Sigo-a mentalmente
Por alguns segundos
Até que recupero a razão.
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(Poema do livro Versos de salón, de 1962. Tradução de minha autoria).

domingo, 15 de abril de 2012

"Tres poesías", Nicanor Parra

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Três poesias
Nicanor Parra
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1
Já não me resta nada a dizer.
Tudo o que tinha a dizer
Foi dito não sei quantas vezes.
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2
Perguntei não sei quantas vezes
Mas ninguém responde minhas perguntas.
É absolutamente necessário
Que o abismo responda de uma vez
Porque já vai restando pouco tempo.
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3
Apenas uma coisa é clara:
Que a carne se enche de vermes.
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(Poema publicado em Versos de salón (1962). Tradução de minha autoria).

domingo, 1 de abril de 2012

Lições de escritura

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Antonin Artaud em tradução de Alejandra Pizarnik
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Talvez seja necessário dizer que ando ultimamente pensando bastante nas seguintes palavras de Julio Cortázar:
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"Se eu fosse uma pessoa de dar conselhos, diria a um jovem escritor que tenha dificuldades de escrever para deixar de escrever por um tempo por conta própria e passar a traduzir boa literatura; um dia ele se dará conta de que está escrevendo com uma fluidez que não tinha antes".
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E nessas outras de Roberto Bolaño:
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"Muitas podem ser as pátrias [do escritor], me ocorre agora, mas apenas um o passaporte, e esse passaporte evidentemente é o da qualidade da escrita. Que não significa escrever bem, porque isso qualquer um pode fazer, mas escrever maravilhosamente bem, e nem sequer isso, pois escrever maravilhosamente bem também pode qualquer um fazer. Então o que é uma escrita de qualidade? Pois o que sempre foi: saber meter a cabeça no escuro, saber pular no vazio, saber que a literatura basicamente é um ofício perigoso. Correr pela borda do precipício: de um lado o abismo sem fundo e do outro lado os rostos de quem se gosta, os sorridentes rostos de quem se gosta, e os livros, e os amigos, e a comida. E aceitar essa evidência ainda que às vezes nos pese mais do que a lápide que cobre os restos de todos os escritores mortos. A literatura, como diria uma folclórica andaluza, é um perigo".
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E com isso volto outra vez sobre Cortázar, quando este diz:
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"Se fizéssemos uma escala de valores de jogos que fosse dos mais inocentes aos mais refinadamente intencionais, acredito que teríamos de colocar a literatura (e a música, a arte, em geral) entre os de expressão mais alta, mais desesperada (sem o valor negativo desta palavra)".
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E então penso em Artaud, e neste trechinho do prólogo que Alejandra Pizarnik escreveu para algumas de suas traduções do poeta francês:
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"Aquela afirmação de Hölderlin, de que 'a poesia é um jogo perigoso', tem seu equivalente real em alguns sacrifícios célebres: o sofrimento de Baudelaire, o suicídio de Nerval, a misteriosa e fugaz presença de Lautréamont, a vida e a obra de Artaud... Estes poetas, e uns poucos mais, tem em comum o haver anulado - ou querido anular - a distância que a sociedade obriga a estabelecer entre a poesia e a vida".   
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E então eu fico pensando... e não posso fazer muito mais do que isso.

sábado, 31 de março de 2012

"Escritores que se alejan", Roberto Bolaño

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O poeta francês Antonin Artaud e seu hyper-expressif olhar
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Escritores que se afastam
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Roberto Bolaño
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    Faz uns dias, com Juan Villoro, nos pusemos a relembrar aqueles autores que haviam sido importantes em nossa juventude e que hoje caíram em uma espécie de esquecimento, aqueles autores que gozaram em seu momento de muitos leitores e que hoje sofrem a ingratidão desses mesmos leitores e que, para completar, não conseguiram interessar aos leitores de uma nova geração.
   Pensamos, claro, em Henry Miller, que em seu dia teve uma grande difusão na Espanha, e cujo nome estava na boca de todos, mas cuja fama talvez obedecia a um equívoco: é provável que mais da metade dos que compraram seus livros o tenham feito esperando encontrar um pornográfico, algo que de certa maneira se justificava e era uma necessidade na Espanha que emergia depois de quarenta anos de censura fradista e franquista.
   No outro extremo nos lembramos de Artaud, puro nervo ascético, que em seu dia também teve boas vendas, e não poucos admiradores espanhóis e mexicanos, e que se alguém comete hoje o erro de perguntar a uma pessoa de menos de trinta anos por seu nome seguramente receberá uma resposta desoladora. Já nem mesmo aqueles que se interessam por cinema sabem quem foi Antonin Artaud, o que é bastante grave.
    O mesmo ocorre com Macedonio Fernández: seus livros, salvo na Argentina, suponho, não se encontram nas livrarias. E com Felisberto Hernández, que nos anos setenta teve um pequeno boom, mas cujos relatos, hoje, só se podem encontrar depois de procurar muito em sebos. Presumo que a sina de Felisberto no Uruguai e na Argentina deve ser diferente, o que nos leva a um problema ainda pior do que o esquecimento: o provincianismo com que o mercado do livro concentra e aprisiona a literatura de nossa língua, e que explicado de forma simples quer dizer que os autores chilenos só interessam no Chile, os mexicanos no México e os colombianos na Colômbia, como se cada país hispano-americano falasse uma língua diferente ou como se o prazer estético de cada leitor hispano-americano obedecesse, antes de tudo, a uns referentes nacionais, quer dizer, provincianos, algo que não acontecia na década de setenta, por exemplo, quando surgiu o boom, nem, apesar da má distribuição, na década de cinquenta ou quarenta.
   Mas, enfim, não era disso que falávamos com Villoro, mas de outros escritores, escritores como Henry Miller ou Artaud ou B. Traven ou Tristan Tzara, escritores que contribuíram para nossa educação sentimental e que agora já não se podem encontrar nos catálogos das livrarias pela simples razão de que quase não tem novos leitores. E também daqueles mais jovens, escritores da nossa geração, como Sophie Podolski ou como Mathieu Messagier, que foram jovens absolutamente maravilhosos e de grande talento e aos quais já não só não é possível encontrar nas livrarias como tampouco nos sites de busca da internet, o que quer dizer muito, como se nunca tivessem existido ou como se nós os tivéssemos imaginado. A resposta a esse refluxo de escritores, no entanto, é muito simples. Assim como o amor se move com uma mecânica similar a do mar, como dizia o poeta nicaraguense Martínez Rivas, assim também se movem os escritores, e um dia aparecem e logo desaparecem e logo, quem sabe, voltam a aparecer. E se não voltam a aparecer também não importa tanto porque eles, de alguma maneira secreta, já são nós.   
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(Texto de Roberto Bolaño publicado originalmente em um jornal espanhol e reunido posteriormente, junto com o conjunto de seus artigos jornalísticos, no volume Entre paréntesis, editado pela Anagrama. Tradução minha).

domingo, 25 de março de 2012

"La francesa", Roberto Bolaño

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A Francesa

Roberto Bolaño

Uma mulher inteligente.
Uma mulher bonita.
Conhecia todas as variantes, todas as possibilidades.
Leitora dos aforismos de Duchamp e dos relatos de
    Defoe.
Em geral com um autocontrole invejável,
A não ser quando se deprimia e se embebedava,
Algo que podia durar dois ou três dias,
Uma sucessão de bordôs e valiums
De te deixar arrepiado.
Então costumava contar as histórias que lhe aconteceram
Entre os 15 e os 18.
Um filme de sexo e de terror,
Corpos nus e negócios nos limites da lei,
Uma atriz vocacional e ao mesmo tempo uma menina com
    estranhos traços de avareza.
Conheci-a quando acabava de fazer 25,
Em uma época tranquila.
Acho que tinha medo da velhice e da morte.
A velhice para ela eram os trinta anos,
A Guerra dos Trinta Anos,
Os trinta anos de Cristo quando começou a pregar,
Uma idade como qualquer outra, eu dizia enquanto
    jantávamos
À luz das velas
Contemplando o correr do rio mais literário do
    planeta.
Mas para a gente o prestígio estava em outro lugar,
Nas faixas possuídas pela lentidão, nos gestos
Primorosamente lentos
Do desconcerto nervoso,
Nas camas escuras,
Na multiplicação geométrica das vitrines vazias
E no buraco da realidade,
Nosso absoluto,
Nosso Voltaire,
Nossa filosofia de alcova e toucador.
Como dizia, uma garota inteligente,
Com essa rara virtude precavida
(Rara para nós, latino-americanos)
Que é tão comum em sua pátria,
Onde até os assassinos tem uma caderneta de
    poupança
E ela não ia ser menos,
Uma caderneta de poupança e uma foto de Tristán Cabral,
A nostalgia do não vivido,
Enquanto aquele prestigioso rio arrastava um sol
    moribundo
E sobre suas bochechas rolavam lágrimas aparentemente
    gratuitas.
Não quero morrer, sussurrava enquanto gozava
Na perspicaz escuridão do dormitório,
E eu não sabia o que dizer,
Na verdade não sabia o que dizer,
A não ser acariciá-la e sustentá-la enquanto se movia
Para cima e para baixo como a vida,
Para cima e para baixo como as poetas da França
Inocentes e castigadas,
Até que voltava ao planeta Terra
E de seus lábios brotavam
Passagens de sua adolescência que de improviso enchiam
    nosso quarto
Com duplos que choravam nas escadas rolantes
    do metrô,
Com duplos que faziam amor com dois caras de uma vez
Enquanto lá fora caía a chuva
Sobre os sacos de lixo e sobre as pistolas
    abandonadas
Nos sacos de lixo,
A chuva que tudo lava
Menos a memória e a razão.
Vestidos, jaquetas de couro, botas italianas, lingerie
    para deixar qualquer um louco,
Para deixá-la louca,
Apareciam e desapareciam em nosso quarto
    fosforescente e pulsante,
E traços rápidos de outras aventuras menos íntimas
Fulguravam em seus olhos feridos como vagalumes.
Um amor que não ia durar muito
Mas que depois resultaria inesquecível.
Isso ela disse,
Sentada junto à janela,
Seu rosto suspenso no tempo,
Seus lábios: os lábios de uma estátua.
Um amor inesquecível
Sob a chuva,
Sob esse céu eriçado de antenas onde conviviam
As abóbadas do século XVII
Com as cagadas de pombos do século XX.
E no meio
Toda a inextinguível capacidade de provocar dor,
Invicta através dos anos,
Invicta através dos amores
Inesquecíveis.
Isso ela disse, sim.
Um amor inesquecível
E breve,
Como um furacão?
Não, um amor breve como o suspiro de uma cabeça
    guilhotinada,
A cabeça de um rei ou um conde bretão,
Breve como a beleza,
A beleza absoluta,
A que contém toda a grandeza e a miséria do mundo
E que é visível apenas para os que amam.
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(Poema do livro Los perros románticos, publicado em 2006 pela editora catalã Acantilado; tradução de Clarisse Lyra).
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domingo, 18 de março de 2012

Um poema tirado de uma novela

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Nas últimas páginas de Divertimento, novela escrita por Cortázar em 1949 mas publicada apenas em 1986, aparece um poema dito por Insecto, o narrador do relato, para uma audiência de amigos. Entre estes estão Susana, que chora ao ouvi-lo, e Jorge, um poeta adepto da poesia automática surrealista, que escarnece do texto pré-fabricado do amigo: "Parece uma das coisas que preferia Don Leonardo Nuri, nosso defunto pai. Mas há que se reconhecer no Insecto um certo aproveitamento da técnica do primeiro Neruda, combinado com um sentimentalismo carrieguino que não está de todo mal". Antes de dizer o poema, Insecto avisa: "Vou dizer um poema pequeno e idiota. Não é um soneto [Insecto era famoso entre seus amigos por escrever sonetos, o que parecia uma verdadeira infâmia para eles], nem sequer é poético. Escrevi depois de ouvir uma canção de Damia em um disco que depois se quebrou ou foi esquecido em alguma casa. É um bom poema, é este poema", e então ele o diz. Eu fiz uma tradução do tal pequeñito e idiota. E agrego em seguida um áudio da canção de que fala Cortázar.         
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JAVA

C'est la java d'celui qui s'en va -

Ficaremos sós e será já de noite.
Ficaremos sós meu travesseiro e meu silêncio
e estará a janela olhando inutilmente
os barcos e as pontes que enfiam suas agulhas.

Eu direi: Já é bem tarde.
Não me responderão nem minhas luvas nem o pente,
somente teu cheiro, teu perfume esquecido
como uma carta voltada para baixo sobre a mesa.

Morderei uma maçã fumarei um cigarro
vendo descer as antenas da noite medusa
seu vasto caracol forrado de veludo

E direi: Já é noite
e estaremos de acordo oh móveis oh cinzas
com o realejo que sobe a esquina
os tristes ossinhos de um peixe e uma amapola.

C'est la java
  d'celui qui s'en va -

É justo, coração, canta o que fica
canta o que fica para cuidar da casa.
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O livro foi traduzido pro português pela editora Civilização Brasileira e talvez aí se encontre uma versão melhor do que a que eu ofereço aqui. O livrinho inteiro vale a visita, aliás. E se pode acompanhar a letra da canção de Damia por aqui.
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sábado, 10 de março de 2012

"Caminhos do espelho", Alejandra Pizarnik

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Desenho de Tâmara Lyra
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Gostaria de ter postado este poema no dia da mulher. Não por algum motivo especial, talvez apenas pra apresentar uma espécie de homenagem (digo "espécie" porque não se trata de uma homenagem, não tem porque ser homenagem) diferente daquelas representadas por botões de rosa vermelhos e comerciais de O Boticário. No entanto, por questões de obrigações estudantis e reformas no banheiro, isso não foi possível. O poema da poeta argentina Alejandra Pizarnik - de quem já falei aqui neste blog -, de todo modo, é de uma beleza imensa, que provavelmente eu não consegui manter na tradução. Suas imagens tem uma potência reveladora e desvelam um imaginário insólito que liga sua poética ao surrealismo. Como traduzi-lo era uma tarefa que me motivava já há algum tempo, dei um jeitinho de consultar uns dicionários ontem à tarde e posto aqui o resultado. O poema se encontra no livro Extracción de la piedra de la locura, de 1968. 
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CAMINHOS DO ESPELHO    
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I
mmmE sobretudo olhar com inocência. Como se não acontecesse nada, o que é certo.

II
mmmMas a ti quero observar até que teu rosto se afaste de meu medo como um pássaro da borda afiada da noite.

III
mmmComo uma menina de giz cor-de-rosa em um muro muito velho subitamente apagada pela chuva.

IV
mmmComo quando se abre uma flor e revela o coração que não tem.

V
mmmTodos os gestos de meu corpo e de minha voz para fazer de mim a oferenda, o ramo que abandona o vento na soleira.

VI
mmmCobre a memória de tua cara com a máscara da que serás e assusta a menina que foste.

VII
mmmA noite dos dois se dispersou com a névoa. É a estação dos alimentos frios.

VIII
mmmE a sede, minha memória é da sede, eu embaixo, no fundo, no poço, eu bebia, me lembro.

IX
mmmCair como um animal ferido no lugar que ia ser de revelações.

X
mmmComo quem não quer a coisa. Nenhuma coisa. Boca costurada. Pálpebras costuradas. Esqueci-me. Dentro o vento. Tudo fechado e o vento dentro.

XI
mmmAo negro sol do silêncio as palavras douravam.

XII
mmmMas o silêncio é certo. Por isso escrevo. Estou só e escrevo. Não, não estou só. Tem alguém aqui que treme.

XIII
mmmMesmo se digo sol e lua e estrela me refiro a coisas que acontecem a mim. E que desejava eu?
mmmDesejava um silêncio perfeito
mmmPor isso falo.

XIV
mmmA noite tem a forma de um grito de lobo.

XV
mmmDelícia de perder-se na imagem pressentida. Eu me levantei de meu cadáver, eu fui em busca de quem sou. Peregrina de mim, fui em direção à que dorme em um país ao vento.

XVI
mmmMinha queda sem fim à minha queda sem fim onde ninguém me aguardou pois ao olhar quem me aguardava não vi outra coisa que a mim mesma.

XVII
mmmAlgo caía no silêncio. Minha última palavra foi eu mas me referia à aurora luminosa.

XVIII
mmmFlores amarelas constelam um círculo de terra azul. A água treme cheia de vento.

XIX
mmmDeslumbramento do dia, pássaros amarelos na manhã. Uma mão desata as trevas, uma mão arrasta a cabeleira de uma afogada que não cessa de passar pelo espelho. Voltar à memória do corpo, hei de voltar a meus ossos doridos, hei de compreender o que diz minha voz.
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terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

"O jogo da amarelinha", capítulo 8

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Eis que andava eu a pensar em peixes. Tudo por causa de um desenho de Tâmara Lyra que me lembrou a disposição que eu tenho pra amar essas criaturas. E então, ontem, numa daquelas coincidências iluminadoras, li um capítulo de O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar, extremamente belo, que me fez digitá-lo quase imediatamente, sei lá exatamente para quê, talvez porque quando eu copio algo eu acho que estou aprendendo mais com aquilo, ou me aproximando e ganhando certa familiaridade com o escrito, com o autor, com seu universo. (Acho que daí vem meu interesse pela tradução, que pratico mal e mal). Mas, neste caso, copiar o trecho não é suficiente. Já planejo uma visita ao aquário de São Paulo, me deslumbro com imagens em sites diversos, investigo espécies, hábitos e tonalidades, numa afición que certamente não conhecerá o próximo mês. E, aproveitando o trabalho já feito, posto aqui o capítulo em questão, na tradução de Fernando de Castro Ferro.      
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     "À tarde íamos ver os peixes no Quai de La Megissérie, em março, o mês leopardo, ainda frio, mas já com um sol amarelo onde o vermelho entrava um pouco mais cada dia que passava. Da grade que dava para o rio, indiferentes aos bouquinistes que nada nos dariam sem dinheiro, esperávamos o momento em que veríamos os aquários (andávamos devagar, adiando o encontro), todos os aquários ao sol e, como suspensos no ar, centenas de peixes cor-de-rosa e negros, pássaros quietos em seu ar redondo. Éramos tomados por uma alegria absurda e você Maga, cantava com vigor, arrastando-me para atravessar a rua, para entrar no mundo dos peixes pendurados no ar.
     Os aquários, grandes e pequenos, redondos e cúbicos, eram colocados na rua para atrair os curiosos. Entre os turistas e as crianças ansiosas, sem falar das senhoras que colecionavam variedades exóticas (550 fr. pièce), encontravam-se esses aquários, verdadeiros cubos ou esferas de água que o sol misturava com o ar, e os pássaros cor-de-rosa e negros, girando e dançando docemente numa pequena porção de ar, lentos pássaros frios. Ficávamos olhando, brincando de aproximar os olhos do vidro, apertando a ponta do nariz, enfurecendo as velhas vendedoras armadas de redes para caçar mariposas aquáticas, e compreendíamos cada vez menos o que é um peixe; por esse caminho de não compreender, íamos ficando cada vez mais perto deles, que não se compreendem. Ficávamos tão perto que já nos tornáramos amigos da vendedora da segunda loja, vindo do Pont-Neuf, que disse a você: "a água fria mata os meus peixinhos. A água fria é muito triste...", e eu pensava na empregada do hotel que me dava conselhos sobre um feto: "não precisa regá-lo, basta colocar um prato com água perto do jarro e, quando o feto quiser beber, bebe. Quando não quiser beber, não bebe..." E nós pensávamos nessa coisa incrível que havíamos lido, que um peixe sozinho no seu aquário se entristece e, então, basta colocar um espelho em frente do vidro e o peixe volta a ficar contente...
     Entrávamos sempre nas lojas onde as variedades mais delicadas tinham aquários especiais com termômetros e pequenos vermes vermelhos. Descubríamos, entre reclamações que enfureciam as vendedoras - tão certas de que nada compraríamos a 550 fr. pièce -, os comportamentos, os amores, as formas. Este era o tempo deliquescente, algo como um chocolate muito gostoso ou um creme de laranja da Martinica, durante o qual nos embriagávamos de metáforas e analogias, procurando sempre participar. E este peixe era precisamente Giotto, como você se recordará; e aqueles outros dois brincavam como cachorros de jade, ou um peixe era a cópia exata de uma nuvem violeta... Descubríamos como a vida se instala em formas privadas de terceira dimensão, que desaparecem se se colocarem de perfil, ou deixam apenas um traço cor-de-rosa, imóvel, vertical, na água. Um rápido movimento da barbatana e, monstruosamente, o peixinho volta a aparecer, com seus grandes olhos e, por vezes, saindo-lhe do ventre, e flutuando, uma transparente faixa de excremento que parece nunca acabar de soltar-se, um lastro que, de repente, os coloca junto de nós, roubando-lhes a sua perfeição de imagens puras, comprometendo-os para usar uma das grandes palavras que tanto empregávamos naqueles tempos".