quarta-feira, 31 de agosto de 2011

A armadilha do diário, por Maurice Blanchot

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O interesse do diário é sua insignificância. Essa é sua inclinação, sua lei. Escrever cada dia, sob a garantia desse dia e para lembrá-lo a si mesmo, é uma maneira cômoda de escapar ao silêncio, como ao que há de extremo na fala. Cada dia nos diz alguma coisa. Cada dia anotado é um dia preservado. Dupla e vantajosa operação. Assim, vivemos duas vezes. Assim, protegemo-nos do esquecimento e do desespero de não ter nada a dizer. "Prendamos com alfinetes nossos tesouros", diz horrorosamente Barrès; e Charles du Bos, com a simplicidade que lhe é própria: "O diário, na origem, representou para mim o supremo recurso para escapar ao desespero total diante do ato de escrever"; e também: "O curioso, no meu caso, é quão pouco tenho o sentimento de viver quando meu diário não recolhe seu depósito". Mas que um escritor tão puro quanto Virginia Woolf, que uma artista tão empenhada em criar uma obra que retivesse somente a transparência, a auréola luminosa e os leves contornos das coisas, tenha se sentido de certa maneira obrigada a voltar para junto de si, num diário tagarela em que o Eu se derrama e se consola, isso é significativo e perturbador. O diário aparece aqui como uma proteção contra a loucura, contra o perigo da escrita. Lá, em As Ondas, ruge o risco de uma obra em que é preciso desaparecer. Lá, no espaço da obra, tudo se perde e talvez a própria obra se perca. O diário é a âncora que raspa o fundo do cotidiano e se agarra às asperezas da vaidade. Da mesma forma, Van Gogh tem suas cartas e um irmão para quem escrevê-las.
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Parece haver, no diário, a feliz compensação, uma pela outra, de uma dupla nulidade. Aquele que nada faz de sua vida escreve que não faz nada, e eis, apesar de tudo, algo de feito. Aquele que se deixa desviar da escrita pelas futilidades do dia, agarra-se a esses nadas para contá-los, denunciá-los ou gozá-los, e eis um dia preenchido. É "a meditação do zero sobre ele mesmo", de que fala, valentemente, Amiel.
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A ilusão de escrever, e por vezes de viver, que ele dá, o pequeno recurso contra a solidão que ele garante [...], a ambição de eternizar os belos momentos e mesmo de fazer da vida toda um bloco sólido que se pode abraçar com firmeza, enfim a esperança de, unindo a insignificância da vida com a inexistência da obra, elevar a vida nula à bela surpresa da arte, e a arte informe à verdade única da vida, o entrelaçamento de todos esses motivos faz do diário uma empresa de salvação: escreve-se para salvar a escrita, para salvar sua vida pela escrita, para salvar seu pequeno eu (as desforras que se tiram contra os outros, as maldades que se destilam) ou para salvar seu grande eu, dando-lhe um pouco de ar, e então se escreve para não se perder na pobreza dos dias ou, como Virginia Woolf, como Delacroix, para não se perder naquela prova que é a arte, que é a exigência sem limite da arte. 
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O que há de singular nessa forma híbrida, aparentemente tão fácil, tão complacente e, por vezes, tão irritante pela agradável ruminação de si mesmo que mantém (como se houvesse o menor interesse em pensar em si, em voltar-se para si mesmo), é que ela é uma armadilha. Escrevemos para salvar os dias, mas confiamos sua salvação à escrita, que altera o dia. Escrevemos para nos salvar da esterilidade, mas nos tornamos Amiel que, voltando-se para as catorze mil páginas em que sua vida se dissolveu, reconhece nelas o que o arruinou "artística e cientificamente", por "uma preguiça ocupada e um fantasma de atividade intelectual". Escrevemos para nos lembrar de nós, mas, diz Julien Green: "Eu imaginava que aquilo que anotava reanimaria, em mim, a lembrança do resto... mas hoje nada mais resta senão algumas frases apressadas e insuficientes, que me dão, de minha vida passada, apenas um reflexo ilusório". Finalmente, portanto, não se viveu nem se escreveu, duplo malogro a partir do qual o diário reencontra sua tensão e sua gravidade.
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Pois, aí está Blanchot: jogando na nossa cara a inutilidade de nossos parcos esforços em estetizar, meio despretensiosamente (uma despretensão na qual quase sempre se esconde a esperança de um  reconhecimento), alguma coisa de nossos dias. E eu que sequer tenho disciplina para manter um diário. Como somos* tolos com nossos blogues e notas no facebook, caindo na armadilha da procrastinação e da ilusão intelectual.     
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* Com "somos" quero na verdade dizer "sou", referindo-me ao uso que eu acabo dando a tais ferramentas. Claro que há quem as aproveite melhor.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Estátuas e atitudes

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Dia desses Rodrigo me perguntava sobre livros dos quais eu tenho nostalgia. Curioso ele ter me perguntado isto justamente num dia em que eu tinha relido "Final de jogo", de Cortázar, conto do qual sempre me lembro com uma certa melancolia. Não sei ao certo o que tanto me impressionou nele desde que o li pela primeira vez. Provavelmente a atmosfera doméstica, lenta e quente, que envolve as personagens do conto numa espécie de torpor pós-almoço, que as faz dormitar facilmente sob um limoeiro no quintal. O fato de haver apenas personagens femininas (três meninas que ainda não completaram o ginásio e duas adultas, a mamãe e a tia) foi possivelmente outro ponto decisivo. Além, é claro, do jogo insólito praticado pelas chicas: fazer pose de estátua ou encarnar uma atitude à borda da linha do trem, para serem avistadas pelos viajantes no limite exato de uma curva que alcança os fundos de sua propriedade. Então respondi à sua pergunta. Respondi com Cortázar e Felisberto Hernández, com Katherine Mansfield e J. D. Salinger, com Fitzgerald e William Faulkner (sim, ele também achou estranho que se quisesse viver em um livro de Faulkner, mas lhe lembrei de alguma passagem de O Som e a Fúria, quando, antes da tragédia, ainda se tem a esperança [sempre vã] de que ela não sobrevenha). E percebi, com a resposta, que em geral os livros dos quais tenho nostalgia são também os meus livros preferidos, pois o meu gosto literário nunca passa ao largo de uma certa identificação ou de uma relação que se desenvolve mais ou menos afetivamente. O que quer dizer que eu não consigo julgar os livros que leio segundo critérios técnicos, e acabo fazendo minhas eleições quase sempre baseando-me em um suposto temperamento da obra. Eu me lembrava, por exemplo, de gostar muito de um conto de Felisberto Hernández chamado "O Balcão". Não me lembrava de nada de seu argumento, apenas que pelo vitral de um balcão de inverno a luz do sol se deixava filtrar em reflexos verdes e que em uma casa com um jardim sombrinhas coloridas ficavam abertas como flores. Isso era tudo o que eu lembrava do conto, e também eram as imagens das quais eu tinha nostalgia. Talvez porque essas sejam coisas das quais eu gostaria de estar cercada. Relendo o conto hoje, reforcei meu gosto por ele, e recordei a relação afetuosa e de todo modo não sadia entre a dona e estes seus objetos. Do mesmo modo, do conto "O Cavalo Perdido", também de Felisberto Hernández, me lembro apenas do cheiro das magnólias. Acho que no conto há um menino que toma lições de piano e no caminho até a casa da professora as magnólias estão carregadas e cheiram bem. Isto é tudo o que me lembro, além de que em algum momento aparece um cavalo perdido na rua, e também neste momento o cheiro das magnólias deve ser forte. Acho que também as plantas, ou pelo menos as flores, me atraem nos contos. Me lembro do conto "Aloé", de Katherine Mansfield, no qual há uma casa (na casa tudo está em desordem, by the way, a família que ali mora, ou se hospeda, não vai bem, pelo que me lembro) em cujo jardim há uma planta, muito feia, que dizem que dá uma flor a cada cem anos, de beleza excepcional. No conto a flor não se abre, não chega sequer a brotar, mas isso já é suficiente pra que eu me lembre sempre dele. 
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Mas, sendo um pouco mais objetiva, ofereço 4 contos que responderiam à pergunta de Rodrigo. Claro, poderia responder com romances, com outros autores, há muitos. Mas, por enquanto, estes: "Final del juego", de Cortázar. "Nadie encendía las lámparas", de Felisberto Hernández (este vale basicamente pelo momento em que a frase-título aparece no final do texto). "A Casa de bonecas", de Katherine Mansfield (este vale a título de ilustração. A bem dizer caberia toda uma antologia dela aqui). "Um dia ideal para os peixes-bananas", de Salinger (este dispensa comentários).

sábado, 6 de agosto de 2011

Poema escrito aos 18

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aos 14 anos
morreu-me um irmão
num acidente de carro
mmmmdepois do enterro
mmmmno mesmo dia
mmmmescrevi um poema
mas não era de fato um poema
mmera algo com rimas dor
mmgritos
e alguma amostra mais
ou menos
direta do caixão.
li-o para uma amiga uma tarde
e talvez ela tenha dito algo grave
talvez tenha chorado um pouco
comigo
embora eu tenha feito de tudo para que não chorássemos
nem eu
nem ela
mmmmchegando em casa
que mais poderia eu fazer
com um troço desse
se não trancá-lo num caderno
amarelecendo numa caixa
até que eu não pudesse mais
mmmesmo com o maior esforço
lembrar
que fim, jesus
pode ter tido

Poema de aniversário

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assim começa nossa corrida:
em julho você quase me alcança.
com 1 ano de diferença somos 
gêmeas
mmmquase
próximas ao máximo com narizes arrebitados e pés
nº 37.
em outubro, no entanto,
torno à dianteira
- e com isso, aviso:
não compita comigo em matéria de velhitude.
o tempo que pra você passa passa
também 

para mim
e posso ver

no canto de minha boca
uma ruga;
enquanto sua pele
clara
é só sardas e riso
no alto dos seus
21 anos.