sábado, 3 de dezembro de 2011

Ainda se ganham diários hoje em dia?

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Me lembro que durante a minha infância era muito comum que as meninas ganhassem diários de presente. Não sei se a tradição persiste ainda hoje, mas tenho a impressão de que não. Nós os ganhávamos em qualquer ocasião: aniversário, amigo secreto, natal. Era um obviedade: alguém sempre ia ganhar um diário em algum momento do ano. Todas tínhamos vários diários e inclusive era comum repassar aqueles menos interessantes em outra ocasião a outra menina que certamente já tinha o seu bocado deles. Por causa disto - e também porque em geral os diários eram iguais: uma capa rosa ou rosa e azul com alguma figura meiga como um ursinho ou uma menininha sorrindo, e as páginas também todas rosas com a figura da capa em marca d'água - este era o tipo de presente idiota de se dar. Isso era durante o primário. Me lembro de ter tido essas centenas de diários durante a segunda e a terceira série, mas eu nunca os levava muito a sério, escrevia umas duas páginas e depois dava os usos mais variados aos caderninhos, arrancava suas páginas e mandava recados, ou simplesmente os abandonava. Em meu aniversário de 9 anos, no entanto, ganhei um diário especial. Pra começar, ele não era rosa. Ele não tinha um desenho na capa, mas uma fotografia. Suas páginas eram de cores e marcas d'água diferentes, uma mais linda que a outra. Até o cadeado era especial. Não era um cadeado vulgar, daqueles comuns de diário. Era um diário realmente muito lindo que a minha tia Grace me deu e pelo qual eu me apaixonei no primeiro momento. Acho que passei um tempo apenas admirando-o e planejando as coisas que iria escrever nele. Eu queria aproveitá-lo da melhor maneira possível. E eu o enchi de cabo a rabo. Me lembro de algumas páginas. A paixão por um ator de seriado de tv, uma briga na escola (uma menina tinha me chamado de cavalo durante uma partida de baleado - injustamente, claro), um elenco detalhado de quais eram as amigas e quais as minhas inimigas entre as colegas de classe, um relato de desentendimentos com minha mãe seguido de uma homenagem a ela, uns dois ou três poemas (os primeiros que escrevi, depois abandonei este hábito), flores secas e papéis dobrados colados. Eu guardei este diário. O que tive em seguida, ao contrário, passou por um processo de apagamento que consistiu em ter suas folhas afogadas em uma pia cheia de água, para que toda a tinta se borrasse e fosse impossível ler qualquer uma de suas palavras. Só então o joguei no lixo. Não era mais um diário, obviamente, era uma massa de papel amorfa pronta pra ser modelada. Mas não poderia ter feito isso com o primeiro. Ele era muito bonito e também muito inocente pra que eu o quisesse destruir assim. Então o conservei. Mas em algum momento ele se perdeu. Eu não poderia dizer quando.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

"De cómo evolucionan los oficios del hombre", Antonio Di Benedetto

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Mais uma tradução de Antonio Di Benedetto, pra fecharmos a série. Mais um conto do Cuentos del exilio (1983).
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DE COMO EVOLUEM OS OFÍCIOS DO HOMEM
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          A filha do carrasco era bela e gentil. Não ignorava a atividade do pai, sem discutí-la ou horrorizar-se com ela, pois, como todos na comarca, considerava-a uma profissão necessária.
No entanto, nunca presenciava uma execução, nem em família se falava das alternativas do trabalho do pai.
O pai preparava seus instrumentos na oficina da parte subterrânea da casa, e a filha observou que a corda era muito tosca. Deduziu que suas ásperas fibras, além de cumprir sua missão de quebrar o pescoço ou suspender a respiração dos condenados, seguramente com seu roçar inclemente os lastimava mais que o necessário.
Também suportou com naturalidade e resignação esse descobrimento.
Até que soube que o carrasco teria que enforcar a filha do marquês, que havia pecado contra a honra da família e do rei. Não quis admitir a idéia de mil pequenos arranhões na branca pele da dama que, em segredo, era seu modelo e seu ídolo.
Então, como um tributo, forjou uma corda de seda, suavíssima, e pediu a seu pai que a aceitasse como presente, para celebrar a distinção que o rei lhe concedera encarregando-lhe da execução da filha do marquês, com preferência sobre todos os outros carrascos oficiais.
O pai sorriu-se discretamente ante a ingenuidade da jovem, que lhe dava uma corda de seda para usar no lugar de seu forte cordel de cânhamo, mas esticou-a em seus potentes braços e comprovou que resistia.
Usou-a para o pescoço da filha do marquês e satisfeito com o resultado decidiu incorporar o laço de seda aos instrumentos de seu ofício, seguro de ganhar outra vantagem sobre todos os demais colegas de seu país e outros países.
Por isso, ao voltar ao lar, declarou à filha:
– Obrigado por sua ajuda.
Mas em lugar de sorrir com aprovação pelo gesto, a jovem soluçou.
O pai percebeu que essas lágrimas obedeciam a uma confusa causa, que não era a de uma emoção filial.