sexta-feira, 13 de agosto de 2010

"Lupe", Roberto Bolaño

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Lupe

Trabalhava na guerreiro, a poucas ruas da casa de
mmJulián
E tinha 17 anos e tinha perdido um filho.
A lembrança lhe fazia chorar naquele quarto do hotel
mmTrébol,
espaçoso e escuro, com chuveiro e bidê, o lugar ideal
para viver durante alguns anos. O lugar ideal para
mmescrever
um livro de memórias apócrifas ou um ramalhete
de poemas de terror. Lupe
era magra e tinha as pernas compridas e manchadas
como os leopardos.
A primeira vez nem sequer tive uma ereção:
tampouco esperava ter uma ereção. Lupe falou de sua
mmvida
e do que para ela era a felicidade.
Depois de uma semana voltamos a nos ver. Encontrei-a
numa esquina junto com outras putinhas adolescentes,
apoiada no paralamas de um velho cadilac.
Acho que nos alegramos em nos ver. A partir de então
Lupe começou a me contar coisas de sua vida, às vezes
mmchorando,
às vezes trepando, quase sempre nus na cama,
olhando pro teto de mãos dadas.
Seu filho nasceu doente e Lupe prometeu à Virgem
que deixaria o ofício se seu bebê se curasse.
Manteve a promessa por um mês ou dois e logo teve que
mmvoltar.
Pouco depois seu filho morreu e Lupe dizia que a culpa
era sua por não cumprir com a Virgem.
A Virgem levou o anjinho por uma promessa não
mmmantida.
Eu não sabia o que dizer.
Eu gostava de crianças, sem dúvida,
Mas ainda faltavam muitos anos para que eu soubesse
o que era ter um filho.
Assim eu ficava calado e pensava no estranho
que parecia o silêncio daquele hotel.
Ou tinha as paredes muito grossas ou éramos os únicos
mmocupantes
ou os demais não abriam a boca nem para gemer.
Era tão fácil manejar Lupe e sentir-se homem
e sentir-se desgraçado. Era fácil acompassá-la
a seu ritmo e era fácil escutá-la falar
dos últimos filmes de terror que tinha visto
no cine Bucareli.
Suas pernas de leopardo envolviam minha cintura
e afundava sua cabeça no meu peito buscando meus mamilos
ou as batidas do meu coração.
É isso que quero chupar, me disse uma noite.
O quê, Lupe? O coração.

"Don't Let That Horse", Lawrence Ferlinghetti

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Não deixe esse cavalo
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Não deixe esse cavalo
mmmcomer esse violino
gritou a mãe de Chagall
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mmmmMas ele
mmmmcontinou
mmmmpintando
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E ficou famoso
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E continuou pintando
mmmmmmmO Cavalo com Violino na Boca
E quando finalmente o acabou
ele pulou sobre o cavalo
mmmmme se mandou
mmmacenando com o violino
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E então com uma mesura discreta ele o deu
ao primeiro nu pelado com quem cruzou
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E não havia cordas
mmmatadas
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***
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Sou fissurada em poema-imagem. E adoro poesia narrativa. Reparem nesse poema de Lawrence Ferlinghetti que traduzi. Ele é o que se pode chamar de "poemaimagemquecontaumahistória". E ele é assim porque, efetivamente, ele é um quadro de Marc Chagall. Ele não traduz ou representa um quadro de Chagall; "Don't let that horse" é o próprio óleo em tela. E os quadros de Chagall são assim. Eles não tem a calma contemplativa das naturezas-mortas de Matisse. Acontecem coisas neles. E acontece exatamente o tipo de coisa que Ferlinghetti narra no poema: coisas absurdas, surreais, irresistíveis de se apurar os detalhes. O que poderia ser natureza-morta em Chagall é frequentemente perturbado por um nu feminino flutuante, por um casal de noivos sem contexto ou mesmo por um cavalo tocando violino. "Don't let that horse" harmoniza-se completamente com o universo de Chagall: o cavalo, o violino, o salto, o "naked nude" e o absurdo da falta de cordas no violino são elementos importantes e constantes na poética do pintor. De fato, "Don't let that horse" é um quadro com todas as emoções e movimentos de Chagall. Mas pintado com a ironia de Ferlinghetti.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Mimesis

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Amo os peixinhos dourados de Matisse. Outro dia li uma coluna da atriz Maria Ribeiro na revista TPM, e ela falava do porquinho-da-índia que seu filho ganhou de presente de Natal, segundo ela meio por influência de Manuel Bandeira, que em um poema ecreveu: "Tereza, você é a coisa mais linda que eu já vi na minha vida, inclusive o porquinho-da-índia que eu ganhei quando tinha seis anos". Me lembro também de uma cena  de "Manhattan", em que Woody Allen, empunhando um gravador, diz: coisas pelas quais vale a pena viver: as peras a as maçãs de Cézanne. Eu tive vontade de ter um aquário depois de ver os óleos de Matisse. Não é estranho que queiramos inventar nossas vidas baseando-nos na ficção?

Ideia Fixa

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Não sei se vocês já leram Salinger. Eu costumava pensar que todo mundo já tinha lido Salinger (pelo menos grande parte de um público jovem e estudante de Letras), mas minha opinião mudou depois que apresentei um trabalho sobre o cara pra um auditório lotado e percebi que quase ninguém entendia o que eu falava. É muito difícil acompanhar uma palestra ou uma comunicação quando não se conhece nada do que está sendo dito. E aconteceu isto, as pessoas começaram a levantar e a se retirar enquanto eu falava de Salinger.

Mas, enfim, se vocês já leram ou tem algum interesse em Salinger, eu tenho algumas coisas a dizer sobre ele. É que eu tenho uma teoria sobre ele. Quer dizer, eu tinha. Depois de uma releitura reveladora que fiz de Seymour, uma introdução, passei a acreditar que Buddy Glass, o segundo dos sete filhos de Bessie, era o narrador (oculto, presumido, invisível, ou sei lá o quê) de uma boa parte dos textos publicados por Salinger.

Buddy é de fato o narrador em “Zooey”, o segundo conto de Franny & Zooey, e em Pra cima com a viga, moçada e Seymour, uma introdução. Mas, depois que prestei atenção em uma declaração de Buddy presente neste último conto, passei a acreditar que ele pudesse ser o narrador também em “Um dia ideal para os peixes-bananas”, em “Para Esmé, com amor e sordidez”, e, até mesmo, em O apanhador no campo de centeio.
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Não me creiam tola: todos sabemos que o narrador de O Apanhador é Holden Caulfield. Mas Buddy Glass é escritor, e a declaração a que me refiro sugere (assim eu a entendi primeiramente) que Buddy seja uma espécie de autor ficcional deste romance. Vejam a declaração. Reparem nas semelhanças entre a “obra” de Buddy, comentada por ele, e a obra de seu criador.
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A esta altura, não me parece mero capricho dizer que já escrevi sobre o meu irmão antes. Pensando nisso, poderia até admitir com um pouco de bom humor que raramente houve uma vez em que eu não tenha escrito a seu respeito. [...] Algumas pessoas – não amigos íntimos – perguntaram-me se não havia um bocado de Seymour no jovem protagonista do único romance que publiquei. [...] Negar isso, descobri, me deixa em pedaços, mas direi que ninguém que conheceu o meu irmão perguntou-me ou disse-me qualquer coisa do gênero – pelo que fico grato e, de certo modo, bastante impressionado, já que boa parte dos meus personagens principais fala manhattanês fluente e idiomaticamente [...].O que posso e devo afirmar é que escrevi e publiquei dois contos que eram para ser inegavelmente sobre Seymour. O mais recente dos dois [...] era um relato pormenorizado do dia do seu casamento, em 1942. [...] mas Seymour mesmo [...] não fazia sua aparição física em lugar algum. Por outro lado, no conto anterior [...], ele não só aparecia em carne e osso como também andava, falava, dava um mergulho no mar e, no último parágrafo, disparava um revólver no cérebro. Mesmo assim, vários membros de minha imediata, se bem que espalhada família, [...] gentilmente apontaram [...] que o jovem, o “Seymour”, que andava e falava naquele conto [...], não era Seymour de maneira alguma, mas estranhamente alguém que se assemelhava muito profundamente – vamos logo com isto – a mim mesmo.
(Pra cima com a viga, moçada/ Seymour, uma introdução. Editora Brasiliense, 1983. Página 55)

Essas palavras me levaram a escrever um ensaio que apresentei ao meu professor de Literatura Norte-Americana II, como parte da avaliação da disciplina. Ele gostou do trabalho, mas não se convenceu da minha teoria. Eu lamentei que ele não me tivesse entendido. Mais tarde, porém, pensando melhor e relendo a coisa (meu trabalho), me dei conta de que tinha de fato me precipitado. Simplesmente levei ao extremo as sugestões travessas de Jerome David e acreditei que o caso estava resolvido, sem me preocupar sequer em fazer uma argumentação decente.

Melhorei depois o texto e trabalhei mais minhas concepções. O que vocês pensam que ele pretendia com essas afirmações? Simplesmente brincar? Será que ele nem se deu conta das coincidências? Para mim, que não subestimo a ficção do mestre americano, há três interpretações possíveis:

1. Salinger baseou sua obra na figura desse narrador que em alguns textos aparece (“Zooey”, “Pra cima com a viga, moçada”, “Seymour, uma introdução”), pronunciando-se em primeira pessoa, assumindo a sua autoria (fictícia), e em outros permanece oculto, como uma espécie de charada que o autor revela apenas em seu último livro;
2. Salinger não produziu seus primeiros textos pensando neles como obras de Buddy, mas achou irresistível a possibilidade de jogar com suas próprias referências naquele que, por deliberação ou não, acabou sendo seu último livro publicado;
3. Buddy Glass é alter-ego de J. D. Salinger.
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Bem, de início, eu prefiro descartar a primeira hipótese. Ela parece meio boba, e de fato é, porque acreditar nela leva a pensar a obra de Salinger como um jogo de adivinhação, já que realmente não há indícios textuais em O Apanhador no campo de centeio ou nos contos de Nove Estórias que apontem para este caminho. Já a segunda opção é interessante. Se, por um lado, não dá pra radicalizar ao apontar Buddy como o personagem-narrador oculto em toda a obra de Salinger (isso seria absurdo), por outro, não podemos negar a semelhança das descrições acima com seus textos precedentes. Ele sem dúvida conhecia bem a sua obra e parece ter deixado esses rastros propositadamente, abrindo assim possibilidades de leitura.

Vejamos o caso de “Um dia ideal para os peixes-bananas”, conto em que Seymour dá um mergulho no mar e um tiro na própria cabeça. O fato de o narrador do conto ser, talvez, irmão do protagonista pode mudar completamente sua interpretação. Se o leitor tem um contato cronológico com a obra de Salinger, ao ler pela primeira vez o relato, ele será informado sobre o último dia de vida de Seymour Glass, por uma voz em terceira pessoa, onisciente, totalmente confiável. Uma voz onipresente que narra os momentos que precederam o suicídio de Seymour com absoluta objetividade, sem titubear diante de um gesto sequer.
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Ao deparar-se com a declaração citada, no entanto, o leitor é obrigado a voltar sobre o conto, e agora sua impressão é outra. O narrador do conto não é onisciente, tampouco esteve presente no momento da ação. Logo, o relato deste dia é fruto da imaginação de Buddy Glass, que tentou intuir cada atitude anterior ao suicídio de seu irmão. Este narrador passa a ser um narrador não-confiável. A objetividade na descrição das cenas passa a ser fruto da subjetividade de Buddy, que tentou recriar imaginativamente – e com base no seu conhecimento do temperamento e personalidade do irmão –, movido por esforços de ordem emocional, pessoal, este momento tão crucial no destino da família Glass – que não foi, embora todos insistam em dizer o contrário, bem assimilado por sua mãe e irmãos.

Mas não apenas a perspectiva narrativa muda. Ao deixar de confiar inteiramente no narrador, o leitor passa a desconfiar também dos personagens que ali se encontram. Até que medida é possível acreditar no Seymour de Buddy? Ele próprio afirma que familiares seus reconheceram naquele “young man” muito mais dele mesmo do que de Seymour propriamente dito. E se Buddy não conseguiu, segundo ele próprio, um retrato fiel de seu irmão, criatura a quem mais conhecia na Terra, o que dizer do retrato da frivolidade de Muriel (esposa de Seymour) que aparece nas primeiras páginas do conto? Quão influenciada por suas inclinações pessoais, pela visão negativa de sua família em relação ao casamento do primogênito, não terá sido a psicologia de Muriel neste conto? E mais ainda a de sua mãe, sogra de Seymour?
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Ao reler o relato, o leitor pode perceber o quanto este Seymour é dotado de ternura, e como os momentos finais da ação, que antecedem o suicídio, são marcados pela total ausência de emoção – provável esforço de Buddy em poupar seu irmão do melodrama e, em última instância, estratégia para lhe salvaguardar do sentimentalismo. Ao reler o conto, o leitor percebe a fragilidade da objetividade. Ele percebe como a realidade aí expressa se apresenta totalmente ligada a uma consciência inalienável que cria e organiza o discurso e é responsável por estratégias que conduzem o leitor: num primeiro momento, o conduz para uma determinada impressão, para, depois, através de outro texto, abrir-lhe os olhos e levá-lo a uma outra direção interpretativa.

Ao perceber essas novas nuanças do conto, ao perceber como tudo se altera na leitura sem que ao menos uma palavra tenha sido trocada no texto, o leitor é jogado no reino da ficção e se defronta com a consciência que exige o ato de narrar. O realismo evidente na primeira leitura transforma-se em conjectura, de todo modo filtrada pelo ponto de vista, pela percepção do narrador. Com isso, me parece que Salinger realiza um jogo narrativo que propõe ao leitor tomar consciência das idiossincrasias da ficção, de seus mecanismos e de seu caráter essencialmente lúdico. Isto, para mim, justifica a plausibilidade daquela segunda opção.

E quanto a Buddy ser alter-ego de Salinger? Esta opção não exclui a anterior. Buddy é escritor. É recluso: mora em uma cabana afastada do centro urbano, sem telefone. Tem caráter irônico, sarcástico. Mas, para mim, o que torna essa opção mais possível, é o fato de os estilos literários dos dois serem um só. Isso pode parecer meio absurdo: sendo Buddy uma criação de Salinger, seu estilo só pode ser o estilo de seu autor. Mas, entendam-me: quando Buddy narra, ele está escrevendo. Salinger deixa isso muito claro. Ele não está simplesmente falando, como Holden. Ele está escrevendo e escreve sobre suas preferências narrativas. Na introdução de “Zooey”, por exemplo, ele diz: “[...] o que pretendo oferecer não é realmente uma estória; é, antes, uma espécie de seqüência cinematográfica de um filme de amadores, realizado em família, só que, em vez de imagens, tem prosa” (Franny & Zooey. Editora do Autor, 1961. Página 62).

É claro que o estilo de Buddy só pode ser o estilo de Salinger, mas o que quero dizer é que Buddy é um personagem. E como personagem, ele foi pensado por seu autor. Sendo ele escritor, certamente salinger teve mais cuidado ainda em precisar o seu estilo. Que tipo de escritor será esse meu personagem? De que coisas falará, em que tom? Certamente essas questões fizeram parte de seu processo de criação, deliberadamente ou não. E o ponto mais importante é que o tom de Salinger nos textos em que Buddy é o narrador é exatamente o mesmo dos seus outros textos, narrados por Holden, pelo Sargento X ou em terceira pessoa. Aparecem neles o mesmo gosto pela transcrição de cartas, a mesma informalidade, a ironia reservada aos personagens, a falta de penetração em suas consciências, o jeito de mostrar e não contar.

De todo modo, não tenho certeza sobre essas coisas. Lhes parece possível que, na declaração destacada, produzida posteriormente à publicação de quase toda a sua obra, Salinger esteja, através de indícios auto-referenciais, conectando ficcionalmente todos os seus livros em torno dessa figura, Buddy Glass? Eu, particularmente, creio que sim, é possível. Não creio que sua obra só faça sentido a partir desta interpretação, tampouco que seja necessário passar por ela. Acredito, no entanto, que Salinger – que deixou sua pena sabe-se lá por quais motivos –, ao por em seu último livro esta declaração – talvez ele até já soubesse que esse seria seu último livro –, abriu outras possibilidades de leitura de sua obra. Eu, como admiradora de sua prosa, não posso deixar de enveredar por estes caminhos.