quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Ideia Fixa

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Não sei se vocês já leram Salinger. Eu costumava pensar que todo mundo já tinha lido Salinger (pelo menos grande parte de um público jovem e estudante de Letras), mas minha opinião mudou depois que apresentei um trabalho sobre o cara pra um auditório lotado e percebi que quase ninguém entendia o que eu falava. É muito difícil acompanhar uma palestra ou uma comunicação quando não se conhece nada do que está sendo dito. E aconteceu isto, as pessoas começaram a levantar e a se retirar enquanto eu falava de Salinger.

Mas, enfim, se vocês já leram ou tem algum interesse em Salinger, eu tenho algumas coisas a dizer sobre ele. É que eu tenho uma teoria sobre ele. Quer dizer, eu tinha. Depois de uma releitura reveladora que fiz de Seymour, uma introdução, passei a acreditar que Buddy Glass, o segundo dos sete filhos de Bessie, era o narrador (oculto, presumido, invisível, ou sei lá o quê) de uma boa parte dos textos publicados por Salinger.

Buddy é de fato o narrador em “Zooey”, o segundo conto de Franny & Zooey, e em Pra cima com a viga, moçada e Seymour, uma introdução. Mas, depois que prestei atenção em uma declaração de Buddy presente neste último conto, passei a acreditar que ele pudesse ser o narrador também em “Um dia ideal para os peixes-bananas”, em “Para Esmé, com amor e sordidez”, e, até mesmo, em O apanhador no campo de centeio.
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Não me creiam tola: todos sabemos que o narrador de O Apanhador é Holden Caulfield. Mas Buddy Glass é escritor, e a declaração a que me refiro sugere (assim eu a entendi primeiramente) que Buddy seja uma espécie de autor ficcional deste romance. Vejam a declaração. Reparem nas semelhanças entre a “obra” de Buddy, comentada por ele, e a obra de seu criador.
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A esta altura, não me parece mero capricho dizer que já escrevi sobre o meu irmão antes. Pensando nisso, poderia até admitir com um pouco de bom humor que raramente houve uma vez em que eu não tenha escrito a seu respeito. [...] Algumas pessoas – não amigos íntimos – perguntaram-me se não havia um bocado de Seymour no jovem protagonista do único romance que publiquei. [...] Negar isso, descobri, me deixa em pedaços, mas direi que ninguém que conheceu o meu irmão perguntou-me ou disse-me qualquer coisa do gênero – pelo que fico grato e, de certo modo, bastante impressionado, já que boa parte dos meus personagens principais fala manhattanês fluente e idiomaticamente [...].O que posso e devo afirmar é que escrevi e publiquei dois contos que eram para ser inegavelmente sobre Seymour. O mais recente dos dois [...] era um relato pormenorizado do dia do seu casamento, em 1942. [...] mas Seymour mesmo [...] não fazia sua aparição física em lugar algum. Por outro lado, no conto anterior [...], ele não só aparecia em carne e osso como também andava, falava, dava um mergulho no mar e, no último parágrafo, disparava um revólver no cérebro. Mesmo assim, vários membros de minha imediata, se bem que espalhada família, [...] gentilmente apontaram [...] que o jovem, o “Seymour”, que andava e falava naquele conto [...], não era Seymour de maneira alguma, mas estranhamente alguém que se assemelhava muito profundamente – vamos logo com isto – a mim mesmo.
(Pra cima com a viga, moçada/ Seymour, uma introdução. Editora Brasiliense, 1983. Página 55)

Essas palavras me levaram a escrever um ensaio que apresentei ao meu professor de Literatura Norte-Americana II, como parte da avaliação da disciplina. Ele gostou do trabalho, mas não se convenceu da minha teoria. Eu lamentei que ele não me tivesse entendido. Mais tarde, porém, pensando melhor e relendo a coisa (meu trabalho), me dei conta de que tinha de fato me precipitado. Simplesmente levei ao extremo as sugestões travessas de Jerome David e acreditei que o caso estava resolvido, sem me preocupar sequer em fazer uma argumentação decente.

Melhorei depois o texto e trabalhei mais minhas concepções. O que vocês pensam que ele pretendia com essas afirmações? Simplesmente brincar? Será que ele nem se deu conta das coincidências? Para mim, que não subestimo a ficção do mestre americano, há três interpretações possíveis:

1. Salinger baseou sua obra na figura desse narrador que em alguns textos aparece (“Zooey”, “Pra cima com a viga, moçada”, “Seymour, uma introdução”), pronunciando-se em primeira pessoa, assumindo a sua autoria (fictícia), e em outros permanece oculto, como uma espécie de charada que o autor revela apenas em seu último livro;
2. Salinger não produziu seus primeiros textos pensando neles como obras de Buddy, mas achou irresistível a possibilidade de jogar com suas próprias referências naquele que, por deliberação ou não, acabou sendo seu último livro publicado;
3. Buddy Glass é alter-ego de J. D. Salinger.
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Bem, de início, eu prefiro descartar a primeira hipótese. Ela parece meio boba, e de fato é, porque acreditar nela leva a pensar a obra de Salinger como um jogo de adivinhação, já que realmente não há indícios textuais em O Apanhador no campo de centeio ou nos contos de Nove Estórias que apontem para este caminho. Já a segunda opção é interessante. Se, por um lado, não dá pra radicalizar ao apontar Buddy como o personagem-narrador oculto em toda a obra de Salinger (isso seria absurdo), por outro, não podemos negar a semelhança das descrições acima com seus textos precedentes. Ele sem dúvida conhecia bem a sua obra e parece ter deixado esses rastros propositadamente, abrindo assim possibilidades de leitura.

Vejamos o caso de “Um dia ideal para os peixes-bananas”, conto em que Seymour dá um mergulho no mar e um tiro na própria cabeça. O fato de o narrador do conto ser, talvez, irmão do protagonista pode mudar completamente sua interpretação. Se o leitor tem um contato cronológico com a obra de Salinger, ao ler pela primeira vez o relato, ele será informado sobre o último dia de vida de Seymour Glass, por uma voz em terceira pessoa, onisciente, totalmente confiável. Uma voz onipresente que narra os momentos que precederam o suicídio de Seymour com absoluta objetividade, sem titubear diante de um gesto sequer.
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Ao deparar-se com a declaração citada, no entanto, o leitor é obrigado a voltar sobre o conto, e agora sua impressão é outra. O narrador do conto não é onisciente, tampouco esteve presente no momento da ação. Logo, o relato deste dia é fruto da imaginação de Buddy Glass, que tentou intuir cada atitude anterior ao suicídio de seu irmão. Este narrador passa a ser um narrador não-confiável. A objetividade na descrição das cenas passa a ser fruto da subjetividade de Buddy, que tentou recriar imaginativamente – e com base no seu conhecimento do temperamento e personalidade do irmão –, movido por esforços de ordem emocional, pessoal, este momento tão crucial no destino da família Glass – que não foi, embora todos insistam em dizer o contrário, bem assimilado por sua mãe e irmãos.

Mas não apenas a perspectiva narrativa muda. Ao deixar de confiar inteiramente no narrador, o leitor passa a desconfiar também dos personagens que ali se encontram. Até que medida é possível acreditar no Seymour de Buddy? Ele próprio afirma que familiares seus reconheceram naquele “young man” muito mais dele mesmo do que de Seymour propriamente dito. E se Buddy não conseguiu, segundo ele próprio, um retrato fiel de seu irmão, criatura a quem mais conhecia na Terra, o que dizer do retrato da frivolidade de Muriel (esposa de Seymour) que aparece nas primeiras páginas do conto? Quão influenciada por suas inclinações pessoais, pela visão negativa de sua família em relação ao casamento do primogênito, não terá sido a psicologia de Muriel neste conto? E mais ainda a de sua mãe, sogra de Seymour?
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Ao reler o relato, o leitor pode perceber o quanto este Seymour é dotado de ternura, e como os momentos finais da ação, que antecedem o suicídio, são marcados pela total ausência de emoção – provável esforço de Buddy em poupar seu irmão do melodrama e, em última instância, estratégia para lhe salvaguardar do sentimentalismo. Ao reler o conto, o leitor percebe a fragilidade da objetividade. Ele percebe como a realidade aí expressa se apresenta totalmente ligada a uma consciência inalienável que cria e organiza o discurso e é responsável por estratégias que conduzem o leitor: num primeiro momento, o conduz para uma determinada impressão, para, depois, através de outro texto, abrir-lhe os olhos e levá-lo a uma outra direção interpretativa.

Ao perceber essas novas nuanças do conto, ao perceber como tudo se altera na leitura sem que ao menos uma palavra tenha sido trocada no texto, o leitor é jogado no reino da ficção e se defronta com a consciência que exige o ato de narrar. O realismo evidente na primeira leitura transforma-se em conjectura, de todo modo filtrada pelo ponto de vista, pela percepção do narrador. Com isso, me parece que Salinger realiza um jogo narrativo que propõe ao leitor tomar consciência das idiossincrasias da ficção, de seus mecanismos e de seu caráter essencialmente lúdico. Isto, para mim, justifica a plausibilidade daquela segunda opção.

E quanto a Buddy ser alter-ego de Salinger? Esta opção não exclui a anterior. Buddy é escritor. É recluso: mora em uma cabana afastada do centro urbano, sem telefone. Tem caráter irônico, sarcástico. Mas, para mim, o que torna essa opção mais possível, é o fato de os estilos literários dos dois serem um só. Isso pode parecer meio absurdo: sendo Buddy uma criação de Salinger, seu estilo só pode ser o estilo de seu autor. Mas, entendam-me: quando Buddy narra, ele está escrevendo. Salinger deixa isso muito claro. Ele não está simplesmente falando, como Holden. Ele está escrevendo e escreve sobre suas preferências narrativas. Na introdução de “Zooey”, por exemplo, ele diz: “[...] o que pretendo oferecer não é realmente uma estória; é, antes, uma espécie de seqüência cinematográfica de um filme de amadores, realizado em família, só que, em vez de imagens, tem prosa” (Franny & Zooey. Editora do Autor, 1961. Página 62).

É claro que o estilo de Buddy só pode ser o estilo de Salinger, mas o que quero dizer é que Buddy é um personagem. E como personagem, ele foi pensado por seu autor. Sendo ele escritor, certamente salinger teve mais cuidado ainda em precisar o seu estilo. Que tipo de escritor será esse meu personagem? De que coisas falará, em que tom? Certamente essas questões fizeram parte de seu processo de criação, deliberadamente ou não. E o ponto mais importante é que o tom de Salinger nos textos em que Buddy é o narrador é exatamente o mesmo dos seus outros textos, narrados por Holden, pelo Sargento X ou em terceira pessoa. Aparecem neles o mesmo gosto pela transcrição de cartas, a mesma informalidade, a ironia reservada aos personagens, a falta de penetração em suas consciências, o jeito de mostrar e não contar.

De todo modo, não tenho certeza sobre essas coisas. Lhes parece possível que, na declaração destacada, produzida posteriormente à publicação de quase toda a sua obra, Salinger esteja, através de indícios auto-referenciais, conectando ficcionalmente todos os seus livros em torno dessa figura, Buddy Glass? Eu, particularmente, creio que sim, é possível. Não creio que sua obra só faça sentido a partir desta interpretação, tampouco que seja necessário passar por ela. Acredito, no entanto, que Salinger – que deixou sua pena sabe-se lá por quais motivos –, ao por em seu último livro esta declaração – talvez ele até já soubesse que esse seria seu último livro –, abriu outras possibilidades de leitura de sua obra. Eu, como admiradora de sua prosa, não posso deixar de enveredar por estes caminhos.

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