sábado, 3 de dezembro de 2011

Ainda se ganham diários hoje em dia?

m
Me lembro que durante a minha infância era muito comum que as meninas ganhassem diários de presente. Não sei se a tradição persiste ainda hoje, mas tenho a impressão de que não. Nós os ganhávamos em qualquer ocasião: aniversário, amigo secreto, natal. Era um obviedade: alguém sempre ia ganhar um diário em algum momento do ano. Todas tínhamos vários diários e inclusive era comum repassar aqueles menos interessantes em outra ocasião a outra menina que certamente já tinha o seu bocado deles. Por causa disto - e também porque em geral os diários eram iguais: uma capa rosa ou rosa e azul com alguma figura meiga como um ursinho ou uma menininha sorrindo, e as páginas também todas rosas com a figura da capa em marca d'água - este era o tipo de presente idiota de se dar. Isso era durante o primário. Me lembro de ter tido essas centenas de diários durante a segunda e a terceira série, mas eu nunca os levava muito a sério, escrevia umas duas páginas e depois dava os usos mais variados aos caderninhos, arrancava suas páginas e mandava recados, ou simplesmente os abandonava. Em meu aniversário de 9 anos, no entanto, ganhei um diário especial. Pra começar, ele não era rosa. Ele não tinha um desenho na capa, mas uma fotografia. Suas páginas eram de cores e marcas d'água diferentes, uma mais linda que a outra. Até o cadeado era especial. Não era um cadeado vulgar, daqueles comuns de diário. Era um diário realmente muito lindo que a minha tia Grace me deu e pelo qual eu me apaixonei no primeiro momento. Acho que passei um tempo apenas admirando-o e planejando as coisas que iria escrever nele. Eu queria aproveitá-lo da melhor maneira possível. E eu o enchi de cabo a rabo. Me lembro de algumas páginas. A paixão por um ator de seriado de tv, uma briga na escola (uma menina tinha me chamado de cavalo durante uma partida de baleado - injustamente, claro), um elenco detalhado de quais eram as amigas e quais as minhas inimigas entre as colegas de classe, um relato de desentendimentos com minha mãe seguido de uma homenagem a ela, uns dois ou três poemas (os primeiros que escrevi, depois abandonei este hábito), flores secas e papéis dobrados colados. Eu guardei este diário. O que tive em seguida, ao contrário, passou por um processo de apagamento que consistiu em ter suas folhas afogadas em uma pia cheia de água, para que toda a tinta se borrasse e fosse impossível ler qualquer uma de suas palavras. Só então o joguei no lixo. Não era mais um diário, obviamente, era uma massa de papel amorfa pronta pra ser modelada. Mas não poderia ter feito isso com o primeiro. Ele era muito bonito e também muito inocente pra que eu o quisesse destruir assim. Então o conservei. Mas em algum momento ele se perdeu. Eu não poderia dizer quando.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

"De cómo evolucionan los oficios del hombre", Antonio Di Benedetto

m
m
Mais uma tradução de Antonio Di Benedetto, pra fecharmos a série. Mais um conto do Cuentos del exilio (1983).
m
m
DE COMO EVOLUEM OS OFÍCIOS DO HOMEM
 m
          A filha do carrasco era bela e gentil. Não ignorava a atividade do pai, sem discutí-la ou horrorizar-se com ela, pois, como todos na comarca, considerava-a uma profissão necessária.
No entanto, nunca presenciava uma execução, nem em família se falava das alternativas do trabalho do pai.
O pai preparava seus instrumentos na oficina da parte subterrânea da casa, e a filha observou que a corda era muito tosca. Deduziu que suas ásperas fibras, além de cumprir sua missão de quebrar o pescoço ou suspender a respiração dos condenados, seguramente com seu roçar inclemente os lastimava mais que o necessário.
Também suportou com naturalidade e resignação esse descobrimento.
Até que soube que o carrasco teria que enforcar a filha do marquês, que havia pecado contra a honra da família e do rei. Não quis admitir a idéia de mil pequenos arranhões na branca pele da dama que, em segredo, era seu modelo e seu ídolo.
Então, como um tributo, forjou uma corda de seda, suavíssima, e pediu a seu pai que a aceitasse como presente, para celebrar a distinção que o rei lhe concedera encarregando-lhe da execução da filha do marquês, com preferência sobre todos os outros carrascos oficiais.
O pai sorriu-se discretamente ante a ingenuidade da jovem, que lhe dava uma corda de seda para usar no lugar de seu forte cordel de cânhamo, mas esticou-a em seus potentes braços e comprovou que resistia.
Usou-a para o pescoço da filha do marquês e satisfeito com o resultado decidiu incorporar o laço de seda aos instrumentos de seu ofício, seguro de ganhar outra vantagem sobre todos os demais colegas de seu país e outros países.
Por isso, ao voltar ao lar, declarou à filha:
– Obrigado por sua ajuda.
Mas em lugar de sorrir com aprovação pelo gesto, a jovem soluçou.
O pai percebeu que essas lágrimas obedeciam a uma confusa causa, que não era a de uma emoção filial.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

"Rincones", Antonio Di Benedetto

m
m
Outra tradução minha para um conto de Antonio Di Benedetto. Desta vez, "Rincones", também reunido no livro Cuentos del exilio (1983).
m
m
CANTOS
 m
Acho que era amor e, no entanto, não perseveramos.
Após dez anos desse encontro/desencontro, dei de cara com ela ao entrar em um escritório.
Conversamos. Eu havia me casado, ela não, mas não insinuou que me culpava por sua solteirice.
Quis defender-se do que já havia passado, e deixou cair uma acusação trivial:
– Não te entendia, Pedro. Seu caráter tão complexo...
Deixou no ar a repreensão caduca e se recompôs para confessar sua própria fraqueza:
– Bom, se eu também não entendo as coisas mais simples.
Opinei que ela insistia em se maltratar com sua excessiva modéstia. Aceitou, à sua maneira:
— Não sei... sou assim. Sempre vai me encontrar pelos cantos.
Em seguida, nessa manhã, nos deixamos ir.
Depois, ao descer de um ônibus, outro ônibus destroçou seu corpo.
Soube por um jornal vespertino. Acudi com o pequeno cortejo de surpreendidos e pesarosos que ela podia reunir.
Alguém havia exercido a piedade de recompor, ainda que toscamente, sua face muito machucada. Mas ninguém teve a compaixão de cobrir o círculo de vidro do caixão, para que não nos detivéssemos ante o rosto desfigurado.
Já não era ela.
Agora deslizo pelos cantos. Os cantos que possuem as casas que constroem os homens e os cantos que têm os espaços abertos: ruas, praças, alamedas. Procuro por ela.
m

sábado, 26 de novembro de 2011

"Martina espera", Antonio Di Benedetto

M

M
Traduzi este conto há uns quatro anos. Até já tive um blog que se chamava assim, Martina espera, e que durou apenas umas semanas. Redescobri a tradução entre meus arquivos nestes últimos dias, quando buscava uma outra coisa. E acho que não cairia mal colocá-la aqui. O conto faz parte do livro Cuentos del exilio (1983), do argentino Antonio Di Benedetto (1922 - 1986). Sua obra contística é toda muito boa, por sinal. Li seus contos completos lá pelo lejano ano de 2007 e me lembro de ter gostado de todos os livros. De seus romances, só conheço um: El silenciero, que também me agradou bastante.
m
m
m
m
MARTINA ESPERA
 m
         Martina espera o marido.
         Quer agradá-lo. O marido amava gatos. Ela cria um gato de luxo, de suave e copioso pelo.
         Martina quase não precisa do mundo exterior. Só aparece para receber ou gastar com o imprescindível suas discretas rendas.
         Após doze anos regressa o marido. Vem grisalho, mas fortalecido pela luta com os bosques e as montanhas, os pântanos e os rios. Não traz os dólares que sua esperança lhe tinha prometido ao partir.
         Martina o vê afundar os dedos na pelagem já opaca e algo encrespada do gato. Como se o saudasse com mais ternura que a ela. Depois não o toca mais.
         Um dia Martina observa que abre uma janela e permanece muito tempo olhando para fora, para o céu.
         Deixa a janela aberta e ela diz “Está ventando” e ele responde “Muda o cheiro das coisas”.
         Pouco depois desaparece, ele com a maleta.
         Martina compreende que se foi, sem um adeus. Sem explicações. Nada mais compreende.
         Contempla, examina a sala e diz a si mesma que está como era doze anos atrás.
        Registra o rosto diante do espelho; fita os cabelos e se concede indulgência: “Como me penteava então, como ele gostava”.
         Senta-se absorta. Trata de entender.
         O gato se desloca, de um sofá a outro, para cochilar mais perto do canto preferido.
         Martina o observa. Repreende-o, com uma voz tênue, como sem dor:
         – Não gostou de você, por isso se foi. Que ia fazer aqui, sem um gato que lhe agradasse? 
m

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Algo de Alejandra Pizarnik

m
m
Disponho aqui traduções minhas para alguns dos poemas do livro Árbol de Diana (1962), da poeta argentina Alejandra Pizarnik. Essas traduções também se encontram publicadas na revista eletrônica Desenredos e podem ser lidas clicando-se aqui. Alejandra Pizarnik nasceu em 29 de abril de 1936 em Buenos Aires, Argentina. Aos 19 anos publicou seu primeiro livro de poemas, La tierra más ajena (1955), que seria depois renegado por ela e excluído de suas principais antologias. Cinco de seus poemários tem sido apontados como peças fundamentais de sua obra: Árbol de Diana (1962), Los trabajos y las noches (1965), Extracción de la piedra de la locura (1968), El infierno musical (1971) e Textos de la sombra y Últimos poemas (1982), este último publicado postumamente. Escreveu também prosa – principalmente ensaios e leituras críticas, nos quais muitas vezes é possível vislumbrar uma espécie de arte poética de sua própria produção – e traduziu autores de língua francesa como Antonin Artaud e Aimé Cesaire. Segundo Silvia Baron Supervielle e Claude Couffon, responsáveis pela edição de sua poesia completa na França, reina na obra de Alejandra um potente desejo de silêncio e em seus poemas tudo é, a um só tempo, real e irreal. Em 25 de setembro de 1972, aos 36 anos, morreu em Buenos Aires em decorrência de ingestão excessiva de barbitúricos.*
m
m
m
Estas são as versões que nos propõe:
um buraco, uma parede que treme...
m
m
---
m
m
por um minuto de vida breve
única de olhos abertos
por um minuto de ver
no cérebro flores pequenas
dançando como palavras na boca de um mudo
m
m
---
m
m
ela se despe no paraíso
de sua memória
ela desconhece o feroz destino
de suas visões
ela tem medo de não saber nomear
o que não existe
m
m
---
m
m
um vento fraco
cheio de rostos dobrados
que recorto em forma de objetos para amar
m
m
---
m
m
agora
mmmnesta hora inocente
eu e a que fui nos sentamos
no umbral de meu olhar
m
m
---
m
m
explicar com palavras deste mundo
que partiu de mim um barco levando-me
m
m
---
m
m
te afastas dos nomes
que fiam o silêncio das coisas
m
m
---
m
m
Aqui vivemos com uma mão na garganta. Que nada é possível já sabiam os que inventavam chuvas e teciam palavras com o tormento da ausência. Por isso em suas preces havia um som de mãos apaixonadas pela névoa.
m
m
---
m
m
no inverno fabuloso
a endecha das asas na chuva
na memória da água dedos de névoa
m
m
---
m
m
É um fechar de olhos e jurar não abri-los. Enquanto do lado de fora se alimentem de relógios e de flores nascidas da astúcia. Mas com os olhos fechados e um sofrimento na verdade demasiado grande pressionamos os espelhos até que as palavras esquecidas soam magicamente.
m
m
---
m
m
Para além de qualquer zona proibida
há um espelho para nossa triste transparência
m
m
m
m
* Pequena biografia incluída por sugestão muito bem-vinda de Juliana Bratfisch.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

joana se cansou de amores platônicos

m
joana tem 15 anos.
joana se cansou de boys n' girls.
xii, ela não quer nem escutar aquele nome.
joana diz que está tudo bem.
e sabe, eu acho mesmo que está.
joana não pensa se matar.
joana quer se acostumar com a ideia.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Dois olhos como baratonas

m
Roberto Bolaño, Adília Lopes
me perdoem
não sou a poeta que prometi
meus dotes são
do tempo em que a melancolia é o verniz das coisas
ocorrem-me carambolas, ocorrem-me cassas bordadas
mas não ocorre que isso seja poesia
isto é, ao que parece
coisas tolas apenas, coisas minhas.
desculpem-me o mau gosto das rimas e
por favor
não pensem que tenciono, com o lamento
choroso,
alcançar algum tipo de efeito meta/contraditório
: não sou Emily Dickinson
sou abeline
e acabo de descobrir que
tenho dois olhos
grandes como baratonas.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

A armadilha do diário, por Maurice Blanchot

m
m
O interesse do diário é sua insignificância. Essa é sua inclinação, sua lei. Escrever cada dia, sob a garantia desse dia e para lembrá-lo a si mesmo, é uma maneira cômoda de escapar ao silêncio, como ao que há de extremo na fala. Cada dia nos diz alguma coisa. Cada dia anotado é um dia preservado. Dupla e vantajosa operação. Assim, vivemos duas vezes. Assim, protegemo-nos do esquecimento e do desespero de não ter nada a dizer. "Prendamos com alfinetes nossos tesouros", diz horrorosamente Barrès; e Charles du Bos, com a simplicidade que lhe é própria: "O diário, na origem, representou para mim o supremo recurso para escapar ao desespero total diante do ato de escrever"; e também: "O curioso, no meu caso, é quão pouco tenho o sentimento de viver quando meu diário não recolhe seu depósito". Mas que um escritor tão puro quanto Virginia Woolf, que uma artista tão empenhada em criar uma obra que retivesse somente a transparência, a auréola luminosa e os leves contornos das coisas, tenha se sentido de certa maneira obrigada a voltar para junto de si, num diário tagarela em que o Eu se derrama e se consola, isso é significativo e perturbador. O diário aparece aqui como uma proteção contra a loucura, contra o perigo da escrita. Lá, em As Ondas, ruge o risco de uma obra em que é preciso desaparecer. Lá, no espaço da obra, tudo se perde e talvez a própria obra se perca. O diário é a âncora que raspa o fundo do cotidiano e se agarra às asperezas da vaidade. Da mesma forma, Van Gogh tem suas cartas e um irmão para quem escrevê-las.
m
Parece haver, no diário, a feliz compensação, uma pela outra, de uma dupla nulidade. Aquele que nada faz de sua vida escreve que não faz nada, e eis, apesar de tudo, algo de feito. Aquele que se deixa desviar da escrita pelas futilidades do dia, agarra-se a esses nadas para contá-los, denunciá-los ou gozá-los, e eis um dia preenchido. É "a meditação do zero sobre ele mesmo", de que fala, valentemente, Amiel.
m
A ilusão de escrever, e por vezes de viver, que ele dá, o pequeno recurso contra a solidão que ele garante [...], a ambição de eternizar os belos momentos e mesmo de fazer da vida toda um bloco sólido que se pode abraçar com firmeza, enfim a esperança de, unindo a insignificância da vida com a inexistência da obra, elevar a vida nula à bela surpresa da arte, e a arte informe à verdade única da vida, o entrelaçamento de todos esses motivos faz do diário uma empresa de salvação: escreve-se para salvar a escrita, para salvar sua vida pela escrita, para salvar seu pequeno eu (as desforras que se tiram contra os outros, as maldades que se destilam) ou para salvar seu grande eu, dando-lhe um pouco de ar, e então se escreve para não se perder na pobreza dos dias ou, como Virginia Woolf, como Delacroix, para não se perder naquela prova que é a arte, que é a exigência sem limite da arte. 
m
O que há de singular nessa forma híbrida, aparentemente tão fácil, tão complacente e, por vezes, tão irritante pela agradável ruminação de si mesmo que mantém (como se houvesse o menor interesse em pensar em si, em voltar-se para si mesmo), é que ela é uma armadilha. Escrevemos para salvar os dias, mas confiamos sua salvação à escrita, que altera o dia. Escrevemos para nos salvar da esterilidade, mas nos tornamos Amiel que, voltando-se para as catorze mil páginas em que sua vida se dissolveu, reconhece nelas o que o arruinou "artística e cientificamente", por "uma preguiça ocupada e um fantasma de atividade intelectual". Escrevemos para nos lembrar de nós, mas, diz Julien Green: "Eu imaginava que aquilo que anotava reanimaria, em mim, a lembrança do resto... mas hoje nada mais resta senão algumas frases apressadas e insuficientes, que me dão, de minha vida passada, apenas um reflexo ilusório". Finalmente, portanto, não se viveu nem se escreveu, duplo malogro a partir do qual o diário reencontra sua tensão e sua gravidade.
m
m
***
M
Pois, aí está Blanchot: jogando na nossa cara a inutilidade de nossos parcos esforços em estetizar, meio despretensiosamente (uma despretensão na qual quase sempre se esconde a esperança de um  reconhecimento), alguma coisa de nossos dias. E eu que sequer tenho disciplina para manter um diário. Como somos* tolos com nossos blogues e notas no facebook, caindo na armadilha da procrastinação e da ilusão intelectual.     
m
m
* Com "somos" quero na verdade dizer "sou", referindo-me ao uso que eu acabo dando a tais ferramentas. Claro que há quem as aproveite melhor.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Estátuas e atitudes

m
m
Dia desses Rodrigo me perguntava sobre livros dos quais eu tenho nostalgia. Curioso ele ter me perguntado isto justamente num dia em que eu tinha relido "Final de jogo", de Cortázar, conto do qual sempre me lembro com uma certa melancolia. Não sei ao certo o que tanto me impressionou nele desde que o li pela primeira vez. Provavelmente a atmosfera doméstica, lenta e quente, que envolve as personagens do conto numa espécie de torpor pós-almoço, que as faz dormitar facilmente sob um limoeiro no quintal. O fato de haver apenas personagens femininas (três meninas que ainda não completaram o ginásio e duas adultas, a mamãe e a tia) foi possivelmente outro ponto decisivo. Além, é claro, do jogo insólito praticado pelas chicas: fazer pose de estátua ou encarnar uma atitude à borda da linha do trem, para serem avistadas pelos viajantes no limite exato de uma curva que alcança os fundos de sua propriedade. Então respondi à sua pergunta. Respondi com Cortázar e Felisberto Hernández, com Katherine Mansfield e J. D. Salinger, com Fitzgerald e William Faulkner (sim, ele também achou estranho que se quisesse viver em um livro de Faulkner, mas lhe lembrei de alguma passagem de O Som e a Fúria, quando, antes da tragédia, ainda se tem a esperança [sempre vã] de que ela não sobrevenha). E percebi, com a resposta, que em geral os livros dos quais tenho nostalgia são também os meus livros preferidos, pois o meu gosto literário nunca passa ao largo de uma certa identificação ou de uma relação que se desenvolve mais ou menos afetivamente. O que quer dizer que eu não consigo julgar os livros que leio segundo critérios técnicos, e acabo fazendo minhas eleições quase sempre baseando-me em um suposto temperamento da obra. Eu me lembrava, por exemplo, de gostar muito de um conto de Felisberto Hernández chamado "O Balcão". Não me lembrava de nada de seu argumento, apenas que pelo vitral de um balcão de inverno a luz do sol se deixava filtrar em reflexos verdes e que em uma casa com um jardim sombrinhas coloridas ficavam abertas como flores. Isso era tudo o que eu lembrava do conto, e também eram as imagens das quais eu tinha nostalgia. Talvez porque essas sejam coisas das quais eu gostaria de estar cercada. Relendo o conto hoje, reforcei meu gosto por ele, e recordei a relação afetuosa e de todo modo não sadia entre a dona e estes seus objetos. Do mesmo modo, do conto "O Cavalo Perdido", também de Felisberto Hernández, me lembro apenas do cheiro das magnólias. Acho que no conto há um menino que toma lições de piano e no caminho até a casa da professora as magnólias estão carregadas e cheiram bem. Isto é tudo o que me lembro, além de que em algum momento aparece um cavalo perdido na rua, e também neste momento o cheiro das magnólias deve ser forte. Acho que também as plantas, ou pelo menos as flores, me atraem nos contos. Me lembro do conto "Aloé", de Katherine Mansfield, no qual há uma casa (na casa tudo está em desordem, by the way, a família que ali mora, ou se hospeda, não vai bem, pelo que me lembro) em cujo jardim há uma planta, muito feia, que dizem que dá uma flor a cada cem anos, de beleza excepcional. No conto a flor não se abre, não chega sequer a brotar, mas isso já é suficiente pra que eu me lembre sempre dele. 
mmmm
Mas, sendo um pouco mais objetiva, ofereço 4 contos que responderiam à pergunta de Rodrigo. Claro, poderia responder com romances, com outros autores, há muitos. Mas, por enquanto, estes: "Final del juego", de Cortázar. "Nadie encendía las lámparas", de Felisberto Hernández (este vale basicamente pelo momento em que a frase-título aparece no final do texto). "A Casa de bonecas", de Katherine Mansfield (este vale a título de ilustração. A bem dizer caberia toda uma antologia dela aqui). "Um dia ideal para os peixes-bananas", de Salinger (este dispensa comentários).

sábado, 6 de agosto de 2011

Poema escrito aos 18

m
aos 14 anos
morreu-me um irmão
num acidente de carro
mmmmdepois do enterro
mmmmno mesmo dia
mmmmescrevi um poema
mas não era de fato um poema
mmera algo com rimas dor
mmgritos
e alguma amostra mais
ou menos
direta do caixão.
li-o para uma amiga uma tarde
e talvez ela tenha dito algo grave
talvez tenha chorado um pouco
comigo
embora eu tenha feito de tudo para que não chorássemos
nem eu
nem ela
mmmmchegando em casa
que mais poderia eu fazer
com um troço desse
se não trancá-lo num caderno
amarelecendo numa caixa
até que eu não pudesse mais
mmmesmo com o maior esforço
lembrar
que fim, jesus
pode ter tido

Poema de aniversário

m
assim começa nossa corrida:
em julho você quase me alcança.
com 1 ano de diferença somos 
gêmeas
mmmquase
próximas ao máximo com narizes arrebitados e pés
nº 37.
em outubro, no entanto,
torno à dianteira
- e com isso, aviso:
não compita comigo em matéria de velhitude.
o tempo que pra você passa passa
também 

para mim
e posso ver

no canto de minha boca
uma ruga;
enquanto sua pele
clara
é só sardas e riso
no alto dos seus
21 anos.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Em 11 de maio, eu sonhei:

m
Um saco grande de maxixes na mão.
Um saco grande, transparente, cheio
Sim
vou prepará-los, fazê-los normal – algum tempero e pronto.
De alguma forma 
a casa como símbolo
mmmmdispersão 
mmmme alguma espécie de glória passada
Na porta da casa corre um rio
– em algum momento eu escorrego pelo rio.
uma longa conversa / um rosto há tempos não visto
yes
 my brother, I still remember you.

sábado, 16 de abril de 2011

So distant

m
Copos transparentes são sim os melhores
ao menos pra se beber a água;
cigarros não vão matar as horas mortas.
Eu era uma criança quando li Tabacaria.
16 anos, sim, mas muito verde, muito fruta, muito tonta
descobri-o no caderno 2 de um jornal
(aquela parte que meu pai sempre ignorava)
lê-lo com ou para os amigos foi frustrante:
todos o tinham visto na aula de literatura
tão diferente, tão outro poema, tão outra coisa / so distant.
Ah, sim, claro, Tabacaria,
o clássico poema de Pessoa
o mais famoso
o que todos costumam conhecer e citar e ler e tudo o mais
(não por outro motivo estaria no jornal).
Que experiência triste.
Os copos transparentes ou muito transparentes
tem algo de mais
tem algo de mágico de místico / poético
permitir ver a transparência dentro da transparência
permitir a visão inteira
o todo do copo / o todo interior do copo
o todo do líquido / o tudo que está contido no líquido
          e é tudo tão nada
          tão água
tão aparentemente vazio e nada e só
é como quando leio um livro ou escuto uma canção
m
 o que resta, depois de tudo?

O que tem detrás da janela?

m
m
Charada que encerra Os Detetives Selvagens, de Roberto Bolaño. Não consigo pensar numa resposta.

sábado, 12 de março de 2011

Retrato de moça com Leica

m
m

estar aqui sentada
é algo como estar aqui parada
não consigo mover mais que dois dedos ao digitar qualquer
mmmmmmmmmmmmmmmmm[de meus poemas ou balelas.
minha planta secou ficou preta
não consigo secar minhas pernas.
estar aqui sentada
é como ler algo que não entendo
não sei mais o que dizer aos estranhos
apenas passo encaro revolvo
apenas posso dizer que não caio
o retrato de Plath não me ilumina.
mmmminha mãe certamente me liga
só lhe posso dizer que não caia
só lhe posso contar da garoa
abro um dicionário
em qualquer de suas páginas as palavras
me dizem a mim
não passarás do conhecimento enciclopédico
não passarás de saber o irretorquível
jamais se aventurar fora do movido
a pura certeza e exibição
serás sempre a antítese de qualquer gesto simples
que busque algum tipo de exploração
mmmserás sempre o gesto puramente simples
de manter-se obstinada (dentro de sua falha).

domingo, 16 de janeiro de 2011

Três haikais e 1 poema de três versos

mm


las gotas de olor
pues que caigan mansamente
de los dulces árboles
mm
mm
estrada de terra
por quantas vezes senti
o cheiro do gado
mm
mm
se o olho do melro 
se mexe logo parece:
olha para mim
mm
***
mm
sim, posso ver-nos:
tardes quentes restos de sol
m
antigas piscinas